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PRIMEIRA INTERVENÇÃO NEUROCIRÚRGICA PRATICADA POR MÉDICO PORTUGUÊS ou

PRIMEIRA INTERVENÇÃO NEUROCIRÚRGICA PRATICADA EM TERRITÓRIO PORTUGUÊS

Sebastião Silva Gusmão

Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais

Chefe do Serviço de Neurocirurgia do Hospital das Clínicas da UFMG

Endereço:

Rua Padre Rolim, 921 – Apt. 21

30130090 Belo Horizonte – Brasil

e-mail:gusmão@medicina.ufmg.br

 

INTRODUÇÃO

Em recente publicação, Pinto F (1) relata a primeira intervenção neurocirúrgica praticada em Portugal, em 1898. Acreditamos que tal primazia possa retroceder no tempo por quase dois séculos desde que o espaço de Portugal englobe também as colônias portuguesas do século 18. O primeiro procedimento neurocirúrgico realizado por médico português foi em 1710, no Brasil, então colônia portuguesa.

Transcrevemos, com grafia atualizada, o relato desse procedimento, realizado pelo cirurgião Luis Gomes Ferreira e publicado em Lisboa, em 1735, no livro Erário Mineral (2).

 

TRANSCRIÇÃO DO RELATO

“Observação maravilhosa de um caso grande, curado com aguardente, em uma ferida da cabeça penetrante.

No ano de 1710, me mandou chamar Dom Francisco Rondom, natural de São Paulo, estando morador nas Minas de Paraopeba, em um ribeiro minerando; e andando os seus escravos trabalhando, caiu na cabeça de um, um galho, ou braço de um pau, que, casualmente, se despregou de seu natural, e logo ficou o tal escravo em terra e sem acordo, nem fala: fez-lhe alguns dos seus remédios caseiros, mas sem efeito algum; no fim de três dias, cheguei a vê-lo e o achei do mesmo modo, sem responder uma palavra, com uma pequena ferida; nestes termos, considerei que algum osso quebrado estava carregando sobre a dura-máter, e ofendendo o cérebro; abri praça em cruz com uma tesoura e, afastando bem a carne e o pericrânio, logo com os dedos achei ossos fraturados para várias partes; tomei o sangue com lequinos de fios molhados em clara de ovo, e sendo junto da noite, antes da hora da ceia, descobri a cura, e, estando o sangue parado (que quer Deus dar o frio conforme há a roupa), porque não tendo mais que clara de ovo e teias de aranha para tomar o sangue, por serem matos gerais, muito distantes de povoado e de vizinhança, parou o sangue, não sendo pouco; e, logo assim que meti os dedos dentro da ferida, achei um osso submerso; e entendo, que aquele era o que fazia o dano, me não enganei, porque, metendo o levantador com melhor jeito que pude, alguma coisa o levantei; e porque o doente estava com um peso notável na cabeça e muito sonolento, depois de ter trabalhado bastante tempo, lhe lancei em cima das fraturas umas pingas de aguardente, tépida somente, para confortar a fraqueza que tinha recebido e a contusão; depois disto curei com todo o ovo, misturado e batido com umas pingas da dita aguardente; no outro dia já o doente falava alguma coisa, e nesse mesmo dia ordenei fosse o doente para a Vila Real de

Sabará em uma rede, onde eu era morador, para lhe assistir, e o curei do modo seguinte.

Depois de chegar o doente, fiz um digestivo de terebintina lavada e misturada com um pouco de óleo de aparício e umas pingas de aguardente, com o qual fiz a primeira cura, molhando nele fios, e curando a circunferência da carne que tinha levantado e afastado, lançando primeiro umas pingas de aguardente morna, somente em cima das rachaduras dos ossos, e pondo-lhe em cima delas fios secos; no outro dia tirei a cura, e meti o levantador outra vez e levantei mais o osso, e daí por diante, foi o doente falando muito bem, mas não com todo acerto; pelo tempo foram saindo os ossos quebrados, curando sempre do mesmo modo, até que saíram todos e ficou o cérebro à vista com um buraco quase do tamanho de uma laranja; pus-lhe um pedaço de casco do cabaço, limpo por dentro e por fora, forrado com tafetá encarnado e seguro, bem justo com as paredes dos ossos em redondo, lançando dentro, antes de o pôr, umas pingas de aguardente quebrada somente da frieza, e por cima do cabaço curava com o sobredito digestivo, carregando bem nos lábios da chaga para ter mão na carne que não crescesse e cobrisse as paredes do osso, que iam em redondo criando poro; e, assim que este ia crescendo, ia eu também aparando e diminuindo o cabaço em roda com um canivete para ir sempre ficando certo com o osso, para ter mão nos apósitos da cura, que é o de que serve o casco de cabaço, com a qual cura continuei sempre, até de todo se fechar o buraco; e não lancei dentro leite, nem óleo rosado onfacino, como mandam os antigos, por ver que com a aguardente ia sucedendo bem desde o princípio; e algumas vezes toquei a carne dos lábios com espírito de vitríolo e outras com pó de pedra-ume queimada, para ter mão nela, enquanto a natureza ia criando o poro e tapando o buraco, por onde se estavam vendo os miolos palpitar claramente; e, assim que o buraco se acabou de fechar, acabei também de lançar fora o casco de cabaço e acabei de curar a chaga com aguardente somente, até de todo encarnar e cicatrizar; falando o doente em toda a cura muito bem e comendo melhor; e, por fim, como em algumas ocasiões o doente falava alguma palavra com menos acerto, mas servindo muito bem, disse a seu senhor o não mandasse carregar na cabeça peso algum.

Esta observação me lembrou ainda a tempo e a quis escrever para doutrina dos modernos e para melhor crença da maravilhosa virtude da aguardente. Quem dissesse aos antigos que em cima das membranas do cérebro e em cima do mesmo cérebro se lançava aguardente, sendo um medicamento tão cálido, que diriam eles, quando encomendam tanto os benignos ? É certo que o haviam de reprovar com a espada na mão, e também é certo que eles não podiam saber tudo”

 

COMENTÁRIOS

No século 18, a medicina em Portugal e seus domínios dividia-se em dois ramos: um erudito, exercido por médicos formados, e outro mais prático, exercido por cirurgiões e barbeiros. As poucas informações existentes sobre a vida de Luís Gomes Ferreira foram quase todas fornecidas por ele mesmo ao longo do livro Erário Mineral (2). Era português, natural da Vila de São Pedro de Rates. Ainda jovem foi para Lisboa, onde aprendeu a arte de cirurgião-barbeiro com Francisco dos Santos, cirurgião da enfermaria Real de Dom Pedro. Completou sua formação no Hospital Real de Todos-os-Santos, em Lisboa. Realizou várias viagens à Índia e ao Brasil como cirurgião. Em 1708 instala-se em Salvador, capital do Estado da Bahia, onde permanece até 1710. Neste ano, muda-se para Minas Gerais, instalando-se, sucessivamente, nas cidades de Sabará, Mariana e Vila Rica. Em 1711, integrou-se, como cirurgião, ao exército recrutado para expulsar a esquadra francesa que invadira a cidade do Rio de Janeiro.  Em 1731 retorna para Portugal e, em 1735, publica o livro Erário Mineral, no qual relata sua experiência médica de 23 anos no Brasil.

 

O Erário Mineral é o quinto livro médico escrito no Brasil, sendo o primeiro tratado geral de clínica, terapêutica e cirurgia. Dividido em 12 capítulos, denominados no livro de Tratados, descreve as doenças mais comuns na região no começo do século 18 e a respectiva terapêutica, baseada principalmente em plantas locais e procedimentos cirúrgicos.

 

A primeira intervenção neurocirúrgica relatada em território português e transcrita acima, trata-se de trauma cranioencefálico, com fraturas expostas e afundamento ósseo, causado pela queda de galho de árvore sobre a cabeça de um escravo, na região de Sabará, em 1710. Ferreira retirou os fragmentos ósseos afundados, fez hemostasia, protegeu a falha óssea e aplicou aguardente na ferida, até a cicatrização completa. O paciente recuperou-se, voltando ao trabalho e permanecendo como seqüela o fato de  “falar alguma palavra com menos acerto”.

 

O tratamento cirúrgico do trauma craniano com fratura conta com razoável documentação desde os tempos pré-históricos. As intervenções sobre o crânio, executadas até o surgimento da neurocirurgia com especialidade, na segunda metade do século 18, se restringiam quase apenas

ao tratamento das fraturas e à drenagem de possível hematoma extracerebral associado (3,4). Assim, Littré (5), em 1898, define trepanação como “a aplicação do trépano, que se pratica ordinariamente sobre o crânio, particularmente para tratar os acidentes de compressão cerebral por fragmento ósseo afundado ou por coleção de sangue”.

 

Apesar de a maioria das trepanações (abertura intencional do crânio) realizada no período neolítico eurasiático e na América pré-colombiana apresentar provável motivação mágica ou religiosa (6,7,8), parece que, em alguns casos, principalmente no Peru incaico, eram realizadas para tratamento de fraturas cranianas com afundamento (8,9). Falam a favor dessa hipótese muitos crânios trepanados encontrados no Peru com fraturas adjacentes à abertura óssea artificial (10).

 

No papiro de Edwin Smith, datado do século 17 a.C., são referidos onze caos de fratura, sendo aí, pela primeira vez, mencionado o cérebro em documento escrito (11). Mas não se encontra nem no antigo Egito, nem na Mesopotâmia, registro de tratamento cirúrgico das lesões traumáticas do crânio, e não se conhecem múmias trepanadas (12).

 

Hipócrates (460-377 a.C.) preconizava o tratamento cirúrgico de algumas fraturas de crânio e descreveu a técnica da trepanação (13). Celsus (25 a.C. – 50 d.C) e Galeno (131 – 201) pormenorizaram as indicações e a técnica cirúrgica referentes às fraturas de crânio (4).

Até a primeira metade do século 19, o tratamento cirúrgico das fraturas do crânio, especialmente daquelas com afundamento ósseo, e dos hematomas extracerebrais e coleções purulentas associados, continuou a ser realizado pelos cirurgiões com poucos melhoramentos em relação à antiguidade clássica. Os critérios mais precisos para as indicações cirúrgicas no trauma cranioencefálico e o aprimoramento da técnica operatória, só foram possíveis no final do século 19, graças à melhor compreensão das funções do sistema nervoso e aos desenvolvimentos técnicos reunidos pelos pioneiros, quando estabeleceram a neurocirurgia como especialidade (14).

 

Tendo por referência a evolução do tratamento do trauma craniano com fratura e afundamento ósseo, pode-se afirmar que o procedimento praticado por Luis Gomes Ferreira, ou seja, a retirada dos fragmentos ósseos afundados, era o preconizado na época e é, em essência, o realizado nos dias atuais. É surpreendente, diante das precárias condições da medicina em Portugal, e especialmente em suas colônias, no início do século 18, que o procedimento realizado por Luis Gomes Ferreira corresponda ao que era preconizado pela elite dos cirurgiões europeus da época e insere-se na tradição da medicina científica desde Hipócrates.


BIBLIOGRAFIA

01. Pinto F. A primeira intervenção neurocirúrgica praticada em Portugal. Sinapse. 2002; 2:56-58.

02. Ferreyra LG. Erário mineral. Lisboa, Oficina de Miguel Rodrigues, 1735: 345-347.

03.    Bakay L. An early history of craniotomy. Springfield, Charles C Thomas, 1985.

04.    Horrax G. Neurosurgery: an historical sketch. Springfield, Charles C. Thomas, 1952.

05.    Littré E. Dictonnaire de Médicine. Paris, Librairie JB Baillière et Fils, 1898, ed. 18.

06.    Broca P. La trépanation chez les Incas. Bull Acad Méd 1866; 32 : 866-871.

07.    Osler SW. The evolution of modern medicine. New Haven, Yale University Press, 1921.

08.    Rogers. The history of craniotomy. Ann Med Hist 1930; 2:495-541.

09.    Horsley V. Brain sugery in the stone age. Br Med J 1887; 1:582.

10.    Tello JC. Prehistoric trephining among the Yauyos of Peru. Proc 18 Internt Cong of Americanists 1913: 75-83.

11.   Breasted JH. The Edwin Smith Papyrus. Chicago, Univ. Chicago Press, 1930.

12.   Campillo D. La enfermedad em la prehistoria: introduccion a la paleopatologia. Barcelona, Salvat Editores, 1983.

13.   Hippocrate. Des plaies de tête. Oeuvres completes. Paris, Littré, 1841.

14.    Ballance SC. A glimpse into the history of the surgery of the brain. Lancet 1922; 22:111-116 e 165-172.


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