BRASILEIROS ESTUDANTES DE MEDICINA EM MONTPELLIER NO SÉCULO XVIII
João Vinícius Salgado
Sebastião Gusmão
Jean Luc Kahn
Daniel Maitrot
INTRODUÇÃO
Quinze estudantes de medicina brasileiros, engajados na libertação de seu país do domínio português, frequentaram a Universidade de Montpellier, no final do século XVIII. No Brasil, vários deles participaram de movimentos sediciosos nas províncias de Minas Gerais, Rio, Bahia e Pernambuco. Ficaram conhecidos como Grupo de Montpellier e sua presença na França indica que estavam não só em busca das idéias revolucionárias que sustentassem seu ideal, mas tramavam a tomada concreta do poder. Ao lado dos estudos médicos, cuidavam de assegurar a viabilidade econômica e a aceitação internacional da nova república que pretendiam fundar na América do Sul. Para isso, chegaram a adotar codinomes, com os quais se entendiam com revolucionários franceses e não-franceses, entre estes o norte-americano Thomas Jefferson (1743-1826) e o inglês Thomas Paine (1774-1809)
O GRUPO DE MONTPELLIER
Eram quinze estudantes (Tabela anexa) oriundos de várias partes do Brasil, notadamente da rica e ilustrada região das Minas Gerais, de onde enorme quantidade de ouro e diamante era exportada (vindo a ser a principal fonte de financiamento à Revolução Industrial, ocorrida a seguir na Europa). Envolveram-se em sucessivas conspirações, a primeira das quais denominada Inconfidência Mineira, ocorrida nas Minas Gerais e denunciada em 1789. Ocorreram também o movimento da Bahia, de 1788, a conspiração da Sociedade Literária, do Rio de Janeiro, de 1792 e a revolta de 1817, de Pernambuco. Mais tarde, com o Brasil já independente, mas sob regime imperial, participaram da sedição republicana denominada Confederação do Equador, abortada em Pernambuco, em 1824. Houve ligação de participantes dessa última com as lutas lideradas, no lado andino da América do Sul, por Simon Bolívar (1783-1830), contra o domínio espanhol.
No caso da Inconfidência Mineira, o médico Domingos Vidal Barbosa Lage (1761-1793) deve ser destacado, porque chegou a transferir-se de Montpellier para o curso médico de Bordeaux, com o objetivo de preparar esta cidade para receber as exportações brasileiras, após a independência. Outro digno de destaque é José Joaquim da Maia (1757-1788), que, com o codinome de Vendek, obteve encontros secretos com Jefferson, que era embaixador dos EUA na França. O futuro presidente da nova república do norte não pôde garantir ao grupo a ajuda pretendida e da Maia faleceu antes de voltar a sua pátria. Tais contatos, entretanto, podem ter influído na idéia do presidente Jefferson de que os EUA englobassem ampla porção tropical, onde se localizaria sua capital – concepção geopolítica não compartilhada por seu sucessor racista.
Dos quinze estudantes do grupo, apenas um completou cinco anos de curso em Montpellier, dois completaram quatro anos e os demais cursaram menos de quatro anos. O fato de permanecerem ali menos do que o necessário para sua graduação sugere que ali estavam apenas com objetivo revolucionário. A vigilância contra estudantes adeptos de idéias iluministas era rigorosa em Portugal, o que levou os mais engajados a se transferirem para Montpellier, onde a vigilância era menor. Alguns, entretanto, passaram a viver na França.
A mais sólida conspiração daí resultante, a Inconfidência Mineira, foi traída por um dos conspiradores. Os sediciosos foram processados e punidos, mas apenas um, de nome Joaquim José da Silva Xavier, apelidado de Tiradentes (1748-1792), foi condenado à morte na forca, tornando-se assim o principal herói nacional brasileiro. Coincidentemente exercia ofício ligado à saúde, pois extraía e restaurava dentes, daí seu apelido. Além disso, prescrevia para doenças em geral, à base de fitoterapia, mas sua profissão formal era de soldado, no posto de alferes (tenente) da força militar colonial. Seu ideal libertário foi subsidiado por conceitos iluministas veiculados por ex-alunos da Universidade de Coimbra, em Portugal, e pelos ex-estudantes de medicina de Montpellier.
Seguindo o caminho abertos por estes revolucionários, houve um segundo grupo de brasileiros que estudaram medicina em Montpellier, no começo do século 19. Por eventual ligação com tais brasileiros, um egresso de Montpellier, nascido na atual Polônia, veio para o Brasil. Trata-se de Napoleon Chernoviz (1812-1881), ali graduado em 1837, que aqui escreveu um guia de medicina prática, usado por médicos e leigos, com numerosas edições, até hoje em uso nos sertões brasileiros.
O GRUPO DE MONTPELLIER
NOME
CIDADE DE ORIGEM
GRADUAÇÃO MONTPELLIER
JOAQUIM SEIXAS BRANDÃO
VILA RICA
1767
JACINTO SILVA QUINTÃO
RIO
1778
INÁCIO FERREIRA CÂMARA
MARIANA
1785
JOSÉ DA MAIA BARBALHO
RIO
1787
DOMINGOS BARBOSA LAGE
JUIZ DE FORA
1786
JOSÉ CÂMARA R. GUSMÃO
RIO
1790
JOAQUIM SOUZA RIBEIRO
SALVADOR
1787
ELEUTÉRIO JOSÉ DELFIM
?
? (MATRÍCULA EM 1786)
VICENTE GOMES SILVA
RIO
1791
FRANCISCO ARRUDA CÂMARA
PARAÍBA
1791
MANUEL ARRUDA CÂMARA
PARAÍBA
1791
MANUEL SOUZA FERRAZ
RIO
1791
JOSÉ JOAQUIM CARVALHO
RIO
1792
FAUSTINO JOSÉ AZEVEDO
SÃO GONÇALO SAPUCAÍ
1793
JOSÉ VIDIGAL MEDEIROS
RIO
1791
SIGNIFICADO HISTÓRICO
O erudito brasileiro Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990) publicou, em 1937, o livro O Índio Brasileiro E A Revolução Francesa, em que procura vincular o surgimento das idéias iluministas aos relatos sobre a bondade natural dos índios brasileiros. Em sentido inverso, estas mesmas idéias atraíram os quinze estudantes de medicina brasileiros, acima enumerados, à Universidade de Montpellier, como parte do esforço para libertar a colônia do Brasil do domínio português.
As idéias iluministas adquiriram força na Europa, durante o século XVIII, e são responsáveis por movimentos revolucionários, entre eles a independência de várias colônias européias nas Américas e também pela Revolução Francesa. Guardam importante relação com a história da medicina, particularmente porque médicos iluministas participaram de movimentos que ajudaram a forjar o mundo ocidental após o século XVIII. Por exemplo, o iluminismo nas Ilhas Britânicas tem vínculo histórico com a faculdade de medicina de Edimburgo, sendo que o influente filósofo John Locke (1632-1704) era também médico (a ele se deve a descrição da nevralgia do nervo trigêmeo). O próprio economista Adam Smith (1723-1790) era funcionário dessa mesma escola médica.
A Holanda, entretanto, foi onde surgiu o iluminismo médico propriamente dito, que, ao mesmo tempo tinha conotação calvinista. Irradiou-se da chamada escola de Leyde, liderada pelo clínico Herman Boerhaave (1668-1738), uma espécie de Hipócrates da Ilustração, que influiu em toda a medicina ocidental.
Na França, os médicos vinham sendo satirizados por intelectuais influentes, como Montaigne (1533-1592), Molière (1622-1673) e Voltaire (1694-1778). Curiosamente um médico em que Voltaire confiava era luso-francês, de nome Jean Baptiste da Silva (1682-1744). Daí que a principal ligação do iluminismo francês com a medicina veio a ser não com a profissão médica, na esfera clínica, mas com as ciências básicas à medicina, por meio da revolução científica iniciada com François Magendie (1783-1855), que foi educado segundo o modelo do Emílio de Rousseau, e completada por seu discípulo Claude Bernard (1813-1878). Esse iluminismo científico, iniciado na fisiologia e denominado medicina experimental, se transferiu metodologicamente a todas as ciências e influenciou também a literatura e demais artes.
Embora o estamento universitário tenha sido também hostilizado pelo iluminismo, as universidades com ligações ibéricas, como a de Montpellier e de Bordeaux, foram ambiente de propagação ideológica e de conspiração, de que é testemunho este relato sobre os estudantes brasileiros na França. No caso dos conspiradores que procuravam um vínculo entre as idéias iluministas mais genéricas e o desejo específico de libertação do domínio colonial, a principal inspiração veio do livro Histoire Philosophique et Politique des Deux Indes escrito pelo ex-jesuíta Guillaume-Thomas François Raynal (1713-1796), também chamado Abade Raynal (Figura anexa). Foi ele o primeiro ideólogo anticolonial, sendo, por isso mesmo, também antiescravagista. Teve seu texto transformado no mais incendiário das três Américas, hoje só comparável aos de Ernesto Che Guevara (1928-1967). Foi lido por Thomas Paine, Thomas Jefferson, Tiradentes e Toussain Louverture (1748-1803).
A libertação do Haiti contra o próprio domínio colonial francês, liderada por Louverture e profetizada por Raynal, também apresenta interessante ligação com a história da medicina. A revolução naquela ilha [tema, aliás, da primeira novela, Bug-Jargal, do adolescente Victor Hugo (1802-1885)] foi acompanhada de epidemia de febre amarela. Para tentar sufocar os heróicos nativistas negros, Napoleão Bonaparte (1769-1821) enviou poderosa força. A peste acometeu duramente os europeus. A doença e a morte de oficiais essenciais aos planos napoleônicos levaram à venda da colônia francesa da Louisiana aos EUA e certamente prejudicou o desempenho militar francês contra a Rússia e a Inglaterra.
RESUMO
Quinze estudantes de medicina brasileiros, engajados na luta pela libertação colonial do Brasil, frequentaram a Universidade de Montpellier, no final do século XVIII. Após regressarem a seu país, participaram de vários movimentos sediciosos nas províncias de Minas Gerais, Rio, Bahia e Pernambuco. São analisadas as participações destes e de outros médicos iluministas em diferentes movimentos que forjaram o mundo ocidental, após o século XVIII.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1841.
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